Iniciei minha carreira quando tinha 18 anos no setor privado e aos 24 tomei a decisão de trabalhar no setor social. Me lembro, como se fosse hoje, do questionamento que minha mãe fez, quando comuniquei essa mudança de rumo: “Mas Elissa, como você vai sobreviver? Mal sabia que essa pergunta me acompanharia por todos esses 20 anos de trabalho no social.
Hoje, consigo compreender as nuances do questionamento e da preocupação. Ela carregava uma ideia pré-concebida, que tenho a impressão de que permanece: quem trabalha no social ou o faz de maneira voluntária, ou não é “profissional”.
Uma vez encontrei uma antiga conhecida no metrô e começamos a falar sobre os nossos trabalhos. Quando disse que trabalhava numa “ONG” (estou usando o termo mais comum para facilitar o texto, mas prefiro “organização social”), veio a seguinte pergunta: “Sua ONG recebe doações que serão usadas para pagar o SEU salário?” (a caixa alta é para dar a ênfase certa). Confesso que na mente – e só nela – foi de bate pronto: “E a sua empresa, paga um salário mensal para você trabalhar?”
Isso serve para tudo e o inverso se aplica. Na área social temos os mesmos problemas e desafios em relação ao trabalho, que os setores público e privado. Igualzinho, nenhuma inovação até aqui. São equipes profissionais que precisam ser remuneradas pelo tempo do trabalho realizado. Simples.
Muitas coisas mudaram nas últimas décadas nesse setor para ainda permanecer no inconsciente coletivo, aquele modelo de atuação “missionário” onde pessoas se dedicavam a uma causa somente por “amor e dedicação ao próximo”.
Um exemplo é que hoje, não vemos as pessoas para as quais realizamos os nossos serviços como “coitadas” esperando serem salvas por nós. O olhar é de potência e desenvolvimento. Delas e o nosso também.
Isso me conecta profundamente com o meu trabalho e, ao mesmo tempo, afeta meus relacionamentos, minha saúde física e mental. Em alguns momentos me sinto vivendo um relacionamento abusivo comigo mesma.
Para explicar melhor essa conexão com o trabalho, utilizo um trecho da pesquisa recente da Phomenta, intitulada "A Saúde Mental e o Bem-Estar dos Profissionais do Terceiro Setor".
Olha que interessante: “55% expressam preocupações significativas com sua saúde mental e bem-estar, por outro lado, 71% dos respondentes afirmaram se sentir motivados em seus trabalhos”.
Faz total sentido, não?
Trazendo uma visão mais ampla do setor social, hoje ele representa 4,27% do PIB, sendo equivalente a mais de 220 bilhões de reais. Isso é mais que o dobro da indústria automobilística (1,7%) e quase equivalente à agricultura (4,6%). Apesar dessa importância, empregando 6 milhões de trabalhadores, permanece invisível como possibilidade de carreira para uma parte da sociedade.
Se esse setor é tão importante para a economia, seu valor é ainda mais inestimável para o
fortalecimento da democracia e exercício da cidadania. Quer contribuir com seu tempo? Procura uma ONG. Quer fortalecer o voluntário corporativo? Procura uma ONG. Quer doar para alguma emergência? Procura uma ONG.
Viu! Sem o setor social, as possibilidades de exercer a cidadania e participação coletiva ficariam limitadas.
“Mas doar dinheiro para investir nas causas que as ONGs abraçam e que seus profissionais sejam remunerados adequadamente?”.
Nesse aspecto, acredito que essa é uma reflexão individual sobre quais mitos ainda permanecem como sendo verdades em nossa maneira de enxergar o setor social.
Se eu pudesse responder à conhecida que encontrei no metrô, seria bem diferente do que pensei na época:
“Sim. Precisamos das doações porque muitos profissionais precisam ser remunerados adequadamente, como qualquer trabalhador. Sim. As doações de empresas e pessoas contribuem para a qualidade do trabalho da educadora lá na ponta, aquelas que estão na linha de frente sendo espelho das nossas desigualdades e se sentem “enxugando gelo” diante do tamanho do desafio social. Sim. Porque a Paulinha da faxina, o Fernando da manutenção e a Eva da cozinha são profissionais dedicados que trabalham todos os dias de segunda a sexta-feira, para que a sala onde as crianças e adolescentes ocupam, esteja sempre limpa, com as manutenções em dia e que, ao terminarem as atividades, elas possam sair e se alimentar adequadamente, muitas vezes, sendo a única refeição do dia. Sim, sim e sim”.
Eu faria um manifesto gentil demonstrando a importância desses trabalhadores – e as organizações sociais - para a construção de uma sociedade menos desigual que, apesar do ”Fla-Flu” atual de opiniões, todos queremos viver.
“Mas Elissa, como vai sobreviver?”
"Boa pergunta mãe..."
Ps1. Na foto acima, estão Mariana Oliveira e Adenilson Amorim, colaboradores da Acorde.
Texto publicado originalmente, no LinkedIn da Acorde neste link.
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