Minha chegada à Acorde, no final de maio de 2022, foi resultado de um processo seletivo bastante criterioso. A organização estava há algum tempo sem assistente social no quadro de funcionários e a equipe gestora, que havia passado recentemente por uma reformulação, tinha grande preocupação em avaliar se os (as) candidatos (as) demonstravam, de fato, alinhamento com as diretrizes e objetivos institucionais que vinham sendo redesenhados.
Antes de me formar assistente social, atuei por muitos anos na área da Educação, inclusive estava lecionando quando participei da seleção da Acorde. Por isso, não foi difícil identificar que, no contexto da minha contratação, além das dificuldades já velhas conhecidas por quem trabalhou em qualquer instituição de atendimento a crianças e adolescentes, as novas e profundas demandas decorrentes da pandemia representavam o maior desafio.
A gestão da crise global em saúde pública gerou e/ou agravou as situações de isolamento social de indivíduos e famílias, bem como as questões de saúde mental, de violência intrafamiliar, de vulnerabilidade social, entre outras.
Deste modo, fatores como gerir os conflitos cotidianos, comunicar-se de maneira assertiva com as crianças e famílias, lidar com comportamentos de extrema apatia ou agressividade, trabalhar a diversidade e a diferença, exercitar as habilidades de convívio social etc., tomaram uma dimensão jamais vista, exigindo de todos os profissionais grandes esforços na elaboração de ações estratégicas capazes de dialogar com esta realidade.
Infelizmente, no Brasil o período pandêmico coadunou com o desmonte das políticas de proteção social e o enfraquecimento da rede de serviços socioassistenciais, aumentando o risco pessoal e social de milhões de cidadãos. Assim, até mesmo encaminhar uma família para atendimento em um equipamento público tornou-se uma tarefa bastante difícil, visto que a volta às atividades presenciais combinou a liberação da imensa demanda reprimida com a redução da capacidade de atendimento dos órgãos públicos.
Diante deste cenário, e convergindo com a minha trajetória profissional, que inclui formação em Direitos Humanos (Collège Henry Dunant) e especialização em “Atenção Psicossocial a Vítimas de Violência” (UFSCar), minha atuação na Acorde vem sendo, desde então, marcada pela preocupação em colocar luz, da perspectiva do Serviço Social, sobre as microviolências e violações cotidianas que, embora sejam parte de um sistema estrutural, foram aprofundadas no contexto pandêmico e hoje se expressam de forma mais aguda e inflamada, com grande impacto sobre a rotina institucional.
Tem sido fundamental o trabalho de conscientização do público, interno e externo, a respeito do papel do Serviço Social nos equipamentos voltados às crianças e adolescentes. Cada vez mais tem sido compreendido que o profissional de Serviço Social não se limita à abordagem dos aspectos socioeconômicos, mas que suas atividades abrangem também as relações de cuidado, a qualidade das interações interpessoais, os modelos de educação, os vínculos afetivos e protetivos, as relações de poder, etc., tanto no espaço institucional quanto nos âmbitos familiar e comunitário.
Partindo desse pressuposto, é fundamental voltarmos nossa atenção para o que Urie Bronfenbrenner chama de “processos proximais”, ou seja, aquelas interações que ocorrem de forma recíproca em nosso ambiente imediato. É neste campo, o campo da troca direta com quem está próximo da gente, que o desenvolvimento humano ocorre e os direitos se materializam, daí a importância da articulação constante entre os micro e macrossistemas que compõem o ambiente de um indivíduo.
Cabe salientar que o trato dos temas acima mencionados não é feito, obviamente, a partir de um olhar terapêutico, pois não cabe ao assistente social adotar um modelo de intervenção “psicologizante”. O trabalho social com as famílias possui foco no processo de viabilização dos seus direitos e dos meios de exercê-los, levando em conta a maneira como os grupos familiares condensam, em sua dinâmica interna, as relações sociais e a dimensão de classe, sempre em conexão com as políticas públicas.
Todos esses elementos nos impõem, portanto, a necessidade urgente de buscar uma reconexão com as famílias, crianças, adolescentes e comunidade. E esta reconexão passa, imprescindivelmente, pela tarefa de repensar, refletir e recriar nossas relações e interações cotidianas, desenvolvendo novas formas de existir e coexistir e ressignificando nossas práticas.
Não se trata, absolutamente, de dizer às famílias como elas devem criar seus filhos, mas de construir, juntos e democraticamente, alternativas não violentas de convívio, assim como espaços seguros que rompam com as barreiras do punitivismo, do autoritarismo, da tutela; a nossa aposta é na potência dos atores, protagonistas de suas vidas e sujeitos de direito.
Por fim, fazendo um balanço desses meus primeiros seis meses de Acorde, posso afirmar que, apesar de bastante intenso e desafiador, esse período foi - e tem sido - de grandes alegrias, justamente porque está sendo vivido em plena sintonia com a equipe gestora, educadores e todo o quadro de funcionários.
Chegamos ao final de 2022 com a sensação de amadurecimento coletivo e a certeza de que o próximo ano será de maior consciência dos processos e das ferramentas que poderão subsidiar nosso trabalho em direção à construção de uma cultura de autogestão democrática, de mobilização e participação social e de efetivo acesso aos direitos pelas crianças, adolescentes e suas famílias.
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